[:pb]Poesia educa os afetos – e deleita mais que terapia[:]

julho 9, 2024

[:pb]O genial Miguel de Cervantes, celebrizado pelo clássico “D. Quixote”, escreveu uma série de novelas no início do século XVII conhecidas por Novelas Exemplares. Uma delas, intitulada “A Ciganinha”, apresenta-nos uma protagonista que, a despeito da pouca idade, demonstra maturidade e clareza de ideias incomuns na juventude.

Entre outras importantes lições que aprendi com esta figura ímpar da literatura – e com alguns de seus interlocutores –, uma, em especial, toca-me profundamente. E não apenas por seu próprio teor, mas pelo lirismo com que nos é ofertada. Diz respeito à poesia.

Preciosa, como é apelidada a ciganinha, em dado momento da novela reencontra nas ruas de Madri um poeta de coplas, conhecido seu. Copla é um tipo de poesia popular, típica da Espanha, geralmente cantada com acompanhamento de música improvisada.

Dias antes desse reencontro, o poeta havia entregado à Preciosa algumas coplas de sua autoria. Quando a reviu, perguntou se ela as havia lido. Eis que se desenrola o seguinte diálogo entre as personagens:

– Antes que eu te responda qualquer coisa, terás que me dizer uma verdade pela vida do que mais quer.

               – Conjuro é este – respondeu o criado – que, ainda que dizê-la me custasse a vida, não a negaria de nenhuma maneira.

               – Pois a verdade que quero que me diga – disse Preciosa – é a de que se por acaso és poeta.

               – Ao sê-lo – replicou o criado – forçosamente seria por sorte. Mas deves saber, Preciosa, que o nome de poeta muito poucos o merecem e, assim, eu não sou senão um apaixonado pela poesia. Para que conste, não vou pedir nem procurar versos alheios: os que te dei são meus e os que te dou agora também, mas não por isto sou poeta, nem o queira Deus.

               – Tão ruim é ser poeta? – replicou Preciosa.

               – Não é ruim – disse o criado – mas ser somente poeta não acho uma coisa boa. É preciso usar a poesia como uma joia valiosíssima, cujo dono não a usa todo o dia, nem a mostra a todos, nem a cada passo, senão quando convenha e seja importante que a mostre. A poesia é uma belíssima donzela, casta, honesta, discreta que se contém nos limites da discrição mais elevada. É amiga da solidão, as fontes a entretêm, os prados a consolam, as árvores a acalmam, as flores a alegram e, finalmente, deleita e ensina a todos que com ela se encontram.

               – Apesar de tudo isto – respondeu Preciosa – escutei dizer que é muito pobre e que tem um pouco de mendigo.

               – Ao contrário – disse o criado – porque não há poeta que não seja rico, pois todos vivem contentes com a sua situação: filosofia que alcançam poucos. (…)

Com esta passagem, Cervantes apresenta-nos a poesia com poesia, de maneira afetiva e até pura, sem afetação. Aproxima-nos, com suas personagens, de características que costumamos atribuir mais à prosa. Entre elas, a de, em alguma medida, ser um meio de transmissão de conhecimento do outro – e de si mesmo, por consequência –, de experiência prévia, ainda que ficcional, de uma vida vivida apenas na cabeça de quem a criou, mas que, em algum momento, também pode se desnudar à nossa frente, na nossa sempre conturbada e imprevisível existência.

O lindíssimo “O Conto da Ilha Desconhecida”, do português José Saramago, que trabalhamos neste semestre com colaboradoras da AFESU na dinâmica estético-reflexiva do Laboratório de Leitura (LabLei), é uma narrativa curta, em prosa, que nos fala a respeito dessa jornada de conhecimento do outro e de autoconhecimento. Se não sais de ti, não chegas a saber quem és, ensina-nos o audacioso homem que queria um barco.

E o que dizer da sabedoria do experimentado general Lorens Loewenhielm, personagem de outra bela narrativa em prosa, o conto “A Festa de Babette”, de Karen Blixen, também lida nos LabLeis da AFESU? A todos já nos foi dito que a graça divina encontra-se por todo o universo. Mas em nossa tolice e miopia humanas, imaginamos ser a graça finita. Por esse motivo, trememos… (…) Trememos antes de fazer nossas escolhas na vida e após tê-las feito trememos de medo de ter escolhido errado.

Sim, essas figuras só são irreais porque criadas. Contudo, não se pode negar que os ensinamentos por elas transmitidos, frutos das crenças e vivências de quem as concebeu, mas também daquilo que é próprio do humano, são altamente formativos.

Mas e quanto à educação dos afetos, para além da dimensão intelectiva? Pois bem! É aqui que a poesia se mostra como outro meio possível de formação humana.

A própria Karen Blixen, acima mencionada, no conto “Tempestades”, põe na boca de uma de suas personagens a seguinte reflexão: (…) grande parte do que é indigno na vida humana poderia ser evitado se as pessoas simplesmente se acostumassem a falar em versos.

Tenho de admitir que seria música para meus ouvidos se as pessoas se acostumassem a falar em versos. No entanto, já me contentaria sobremaneira se, ao menos, tivessem o hábito de ler poesia e se permitissem educar por essa aprazível expressão artística.

Há alguns meses li “A Educação Sentimental”, do filósofo espanhol Julián Marías. O conterrâneo de Miguel de Cervantes apropria-se do título de um romance de Gustave Flaubert para desenvolver a ideia da educação dos afetos e dos sentimentos. Para isso, apresenta-nos a literatura e as artes, justamente, como caminhos possíveis para tal educação.

Embora foque a produção em prosa, Marías dedica especial atenção à poesia enquanto arte que deleita e ensina a todos que com ela se encontram, como diz o poeta das coplas citado nos primeiros parágrafos deste artigo, mas que também – e, talvez, sobretudo – é capaz de educar-nos enquanto seres que sentem.

Diz-nos o filósofo que A forma elementar e básica da literatura em relação aos sentimentos, em particular o amoroso – ou, com mais rigor, os sentimentos que acompanham o amor –, é a poesia lírica, que condiciona, antes da representação da vida humana, sua tonalidade. (…) A poesia dá à vida uma coloração emocional [destaque do autor].

Ora, em tempos tão cinzas e sombrios, quem aqui seria maluco de abrir mão de uma coloração emocional na vida? Eu, que sou metido a escrever versos, admito não ter a grandiosidade de espírito do poeta das coplas para negar o título que a vaidade teima em me impor. Todavia, amparo-me nesse paradoxo existencial para permitir-me, cada vez mais, deleitar-me e ser educado pela sensibilidade de quem consegue transpor para versos – e, com eles, jogar luz nos meus afetos – as mais sutis e recônditas melodias da alma humana, nem sempre tão belas quanto gostaríamos que fossem ou imaginamos que sejam.

Em entrevista ao jornalista e escritor angolano José Eduardo Agualusa, num trecho reproduzido pelo próprio autor africano na apresentação do livro “Memórias Inventadas”, o poeta Manoel de Barros disse, com a simplicidade que lhe era marca registrada, que O verso é um socorro para aqueles que não dominam tão bem o idioma. Abusado que sou – e ainda muito mal-educado, como podem notar –, permito-me ir além: o verso, para mim, é um socorro para aqueles que não dominam tão bem a própria existência – ou seja, eu, você e as quase 8 bilhões de pessoas que ocupam cada pedaço desse chão que pisamos.

Da minha parte, pelo menos, celebro a existência da poesia (e a consumo com voracidade, claro!), ainda que muitos, lamentavelmente, reneguem-na. E sou grato a Manoéis, Carlos, Marios, Fernandos, Vinícius, Cecílias, Coras, Adélias, Hildas e a tantos(as) outros(as), mundo afora, que se dispuseram a trabalhar, mesmo sem que talvez soubessem, como educadores de almas, afetos e sentimentos.

Não sei quanto a vocês, mas eu, sem esses gênios sensíveis, não seria apenas um homem ainda mal-educado; talvez fosse, na verdade, o mais chucro dos bípedes.

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Unidades: Veleiros
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